APARIÇÕES : AS VENTANIAS, À NOITE
As ventanias, à noite
Davam-nos um medo, um medo
Comprido. Elas traziam todas
As assombrações. As árvores
Retorciam-se e assobiavam
Forte. Nossas
Casas frágeis, muitas vezes
Eram destelhadas. Ninguém
Dormia. Os relâmpagos
Pareciam serpentes
endemoniadas
Pegando fogo. Ao amanhecer
A claridade trazia-nos
alegria,
Mesmo que os estragos fossem
Grandes. Quase sempre
lamentávamos
A morte de um pinto ou a
Ausência do cabritinho.
Nunca mais vi o vento.
Seria um bando de almas penadas
Em fúria? ou a queda de
alguma
Estrela?
Muito branco, macilento, uns
fiapos
Alourados no bigode. Roupas
sem cor.
Desbotadas. Emitia alguns
sons.
Chapéu afunilado e roto.
Sempre trazia as mãos atrás
das
Costas. Entrava em algumas
casas
E se dirigia à cozinha.
Alimentava-se
Os meninos o
Acompanhavam. Tinham pena
dele
Tinham-lhe simpatia. Às
vezes ia pelas
Estradas e voltava depois de
três
Ou quatro dias todo
avermelhado
Da terra das fazendas de
café.
Ângelo bobo era irmão de
todos.
Um dia caminhou, caminhou
Foi até o fim do mundo.
Montado no galho de uma
árvore do pasto
Tocava bombardino. Os anjos
dos arredores
Vinham me acompanhar com
seus violinos
Os bois se aglomeravam
silenciosos
Para nos ouvir. O sol
retardava
A descida e a lua se
avivava.
Minha alegria era imensa.
Aos poucos vinha
O escuro me amedrontava, e
os anjos
Se iam. A música cessava. Os
bois,
Um atrás do outro, tomavam
seu trilho.
Sozinho tratava de sair,
assobiava
Ligeiro e forte, numa
carreira chegava
Em casa. A luz mortiça do
lampião
Projetava nas paredes
sombras
Movediças e inquietantes.
Nessas noites ficava com os
nervos
Expostos, qualquer ruído me
atemorizava.
Nunca mais vi os anjos e nem
o bombardino.
Numa madrugada fria a lua
nos dava
Pequena e bruxuleante
claridade.
Saía-se cismando por ali
afora.
Quem se lembra das
frutas-de-lobo,
Com suas flores roxas e
galhos espinhentos?
Não lhe sabíamos a
serventia. Era voz
Corrente sua aliança com o
diabo
E as visitas constantes dos
urubus ...
O Saci-Pererê trançava-lhe
os galhos.
As goiabeiras quando nasciam
Espiavam para todos os lados
Se a vista as alcançava,
Tratavam de nascer em outro
sítio.
Os pássaros jamais pousavam
nelas,
Mas se acontecesse, tínhamos
certeza
De que eram forasteiros. Um
dia uma
Saindo correndo atrás das
crianças
Que lhe atiravam pedras.
Gosto dos rios, do seu
aspecto manso.
Onde nasci não os há, só
existem córregos.
As águas incautas vão
ligeiras e nos
Moinhos são estranguladas.
Avisam-nos
Do perigo dos redemoinhos.
Em toda
Parte os avistávamos, até no
campo.
Iam deslizando,
Perdiam-se ao longe.
Vi o primeiro rio, parecia
um mar
Foi o Pardo; atravessava
cidades.
Dele tiravam areia, peixe e
muita maleita.
Suas margens eram povoadas
de almas
Penadas: senhores de
escravos apareciam
A certas horas e em
determinados
Lugares – em grande barco
negro.
Dos seus dedos saía fogo.
Se a calda do cometa
Relar na terra, o mundo
Acabará, comentavam os
Homens do meu povoado.
Nós parávamos de brincar.
Ficávamos vigilantes
Olhando o céu. De vez em
Quando alguém dizia: ele
Passou correndo e
escondeu-se
Atrás das outras estrelas!
Protestávamos:
__ Você o que viu foi a
Alma penada
Vivíamos entre o sonho
E o medo. Acabaram-se os
cometas.
Quantas vezes montado
Nas árvores fazia grandes
Viagens. O silêncio no campo
Nos transportava para longe.
Entrávamos no mundo
Desconhecido. A imaginação
Varava as nuvens e o vento.
Ao nosso redor os zebus
pastavam.
O mugir de algum
assustava-nos
E caíamos na realidade.
Já começavam as aparecer as
sombras da noite.
Infância atribulada.
Nos dias de assassinatos
A noite era de pesadelos.
Sofrimentos.
Só no campo havia
Tranqüilidade.
Caminhava pelo trilho dos
animais
Ali sonhava com tanta
intensidade!
Ao longe via príncipes,
Princesas e o rei amigo.
Sentia-me
Em outras cidades. Em
qualquer
Seria melhor.
Os medos e a morte viviam
Em meu povoado.
De mãos dadas com uma
Anja de grande beleza.
Seu aparecimento
transformou-me:
Perdi o juízo. Um dia
levou-me
Ao paraíso. Vi meus velhos
amigos,
Falei-lhes insistentemente,
Mas eles não me olhavam, não
deram por mim
As flores eram imensas. Não
vi
Nenhum santo conhecido.
Saí triste pensando em meus
amigos.
Quantos mortos vi passar!
Vejo ainda
Os enterros dobrando a
praça. Homens silenciosos
E escuros, vindos das
fazendas distantes,
Trazendo o caixão negro,
cansados do
Longo caminhar. Meu cérebro
se
Enchei de caixões pretos,
assombrações,
Pavor. Alguém mais velho
vinha
Fazer-me companhia.
Ao amanhecer o sol
afugentava
Todos os medos.
Muitas vezes ia ao campo
caçar
Lobos e tigres: enchia o
embornal
De pedras e levava o
estilingue.
Voltava sem caça. Não
existiam
Essas feras em nosso campo:
Experimentava apenas minha
coragem ...
Minha vida é tua presença
Teu espírito, tua voz, tua
pele e
Teu corpo. Tua claridade
ilumina o escondido
Até o céu caminhemos de mãos
dadas
Pelo azul. Perto das
estrelas mais luminosas.
Sem te tocar, meu corpo
incendeia-se
Se acontecesse também a ti
...
Unidos num corpo só.
Um dentro do outro
Como pássaros invisíveis
Na inocência criaríamos o
bem permanente.
Rio, agosto de 1961.