DEUS DA VIOLÊNCIA

 

 

Estou com vida mas tive sempre à espera

De viver. Não sei por que estou isolado e só

Sentimos a inutilidade em existir. Se houver Deus

É de violência; nos deixa apodrecer ainda caminhando

É o dono de moléstias pavorosas. Alimenta

As dores dos recém-nascidos, do homem, da mulher,

De velho e do cão. Há repetição de ruídos

Furacões, lamento de crianças com fome

Andamos, mal-encarados, e com o pensamento

Em enganar alguém. Desconfiados, temerosos

Das doenças incuráveis. Ignoramos estarmos

Já inscritos numa delas.

 

Quem seriam aqueles três rasgados

E sem cara? Vinham a cavalo.

Mais próximos não davam impressão de gente,

Mas de três volumes se movendo como bandeiras

Esfarrapada. Rentes a mim, estenderam

algo como uns braços, com vestígios

de dedos, segurando uma caneca de folha.

Eram restos de três criaturas

Espaventosas carregando a lepra.

Vinham das bandas do Triângulo. Os sons

que emitiam eram como

Sombras de palavras.

Meu pai chamou-os

para o almoço. Sentaram-se à nossa mesa.

Nós crianças olhávamos intimidados

Depois confraternizados. Quando se foram,

perguntamos: __ Que santos

São aqueles?

 

Os cavalos dos leprosos se aprecem com eles.

Manchas no focinho e no corpo, o mesmo olhar

Mortiço e desacoroçoado

Homem e cavalo

Vinham vagarosamente

De porta em porta. Teriam

A mesma doença?

Arrepiados da cabaça aos pés,

O sol os acariciava, e se moviam lentamente.

Nas noites de treva

O cavalo era o guia, só ele enxergava.

Eram como dois irmãos. O alimento,

Repartido e o descanso também ...

Seriam dois reis?

 

Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos

Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos

Doloridos como fagulhas de carvão aceso

 

Corpos disformes, uns panos sujos,

Rasgados e sem cor, dependurados

Homens de enorme ventre bojudo

Mulheres com trouxas caídas para o lado

 

Pançudas, carregando ao colo um garoto

Choramingando, remelento

Mocinhas de peito duro e vestido roto

Velhas trôpegas marcadas pelo tempo

 

Olhos de catarata e pés informes

Aos velhos cegos agarradas

Pés inchados enormes

Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas

 

No rumor monótono das alparcatas

Há uma pausa, cai no pó

A mulher que carregava uma lata

De água! Só há umas gotas – dá uma só

 

Não vai arribar. É melhor o marido

E os filhos ficarem. Nós vamos andando

Temos muito que andar nesse chão batido

As secas vão a morte semeando.

 

No povoado sonhando

Viu o mar. Um dia o

Veria de verdade.

Passaram alguns dezembros.

 

Chegou à praia

Sem saber se era dia ou noite,

Distante dali deixara o

Campo, os animais e as flores.

 

Faziam parte de sua

Vida de menino pobre.

Lembrava-se da chuva do rio e dos pássaros.

Não pode ver o mar: estava cego.

 

Mulheres com dor-d’olhos cobertas de trapos e

Sempre grávidas. Saindo dos panos há uma cara

Canelas finas e feridentas. Desde o seu nascimento

Penam. Noite e dia trabalham. Muitas já cegas,

Os filhos tracomosos e opilados

 

As mocinhas de dezesseis anos

Só trazem na boca uns cacos de

Dentes. São assombrações. Espantam as águas dos

Rios e o arvoredo. Morrem trabalhando e

Ressurgirão no azul do céu vestidas de Lua.

 

Faltam-me as pernas.

Tenho um braço e meus

Olhos são fracos. O coração palpitando

Sempre.

 

Vim da terra vermelha e do

Cafezal.

 

As almas penadas, os brejos e as matas virgens

Acompanham-me como o espantalho,

Que é meu auto-retrato.

 

Todas as coisas

Frágeis e pobres

Se parecem comigo.

 

Minha pupila estará cheia

De tanta gente? Mas está vazia ...

Fantasmas movendo-se

Sem existência.

 

Levarei meus olhos fugindo

Procuro os escondidos inutilmente ...

Na mediocridade – nem

Uma quinta-feira de folga ...

Trabalham vestindo-se e o

Vento os move.

Não entendem. Tempo gasto

À-toa, à-toa.

 

Se soubesse conversar com a erva

Macia. Sem jeito piso-a esmagando-a

Impedindo de um encontro desejado.

 

Agitam-se meus cabelos

Correndo. Meus braços vão para

O sul e as pernas par o norte

Boneco Carlitiano.

 

Faltam-me as lágrimas e o

Entendimento. Não vejo a lua e

Nem o sol ao meio-dia ...

Eu não existo talvez.

 

Me darão a morte em noite de

Lua? Mas bom seria

Sem ninguém perto de mim.