O MENINO E O POVOADO

 

 

Fizeram uma parada, uma parada

Para o trem carregar café,

Antes, estradas difíceis, só carros de bois

Transitavam, levando dias e dias.

Depois, uma casa aqui, outra ali.

 

Formaram o povoado. Não

Há rio, nem pedras,

De tijolos caiados e telhas antigas

São as construções de taipas e

Arame farpado, os divisores.

 

Lugar arenoso no meio da terra roxa

Cafeeira. Imenso céu azul circula

O areal. Milhares de brancas nuvens

Viajam. Caravanas luminosas

Em movimento. O mais solitário, ali

Deixaria de sê-lo. Toda essa fagueira

Companhia. Alegre e promissor

Futuro ...

 

As festas, os bailes, a banda de música

Procissões e o sino repicando ...

Muito povo endomingando

Noites enluaradas e todas as estrelas

Eram mais claras do que os dias nos outros povoados.

 

Antes da luz e da água encanada,

No povoado havia lamparina

E cisterna; dez a quinze metros

Para encontrar o líquido.

 

Os circos traziam iluminação

De carbureto. Próximos

Dos elementos. Quantos vendavais e

Chuvas de granizo!

 

Moinhos de garapa,

Feitos de madeira – canaviais

E matas virgens com seus pássaros e

Frutas. Consumiram.

 

Tudo e mais as lendas. Onde

Estarão os jacus e as pacas?

Os jenipapos e jatobás?

As estradas cortando as

 

Matas criavam histórias

E medos. Os caminhos

Também fugiram. Olhando

O céu, às vezes os vejo transformando em nuvens.

 

Saí das águas do mar

E nasci no cafezal de

Terra roxa. Passei a infância

No meu povoado arenoso.

 

Andei de bicicleta e em

Cavalo em pelo. Tive medos

E sonhei. Viajei no espaço,

Fui à lua primeiro do que o Sputnik.

 

Caminhei além, muito além, para

Lá do paraíso. Desci de pára-quedas,

Atravessei o arco-íris, cheguei

Nos olhos d’água antes do sol nascer.

 

Nasci e montei na garupa

De muitos cavaleiros. Depois

Montei sozinho em cavalo de

Pé de milho. Fiz as mais

 

Estranhas viagens e corri

Na frente da chuva durante

Muitos sábados. Dava poeira

No trenzinho de Guaivira.

 

Paco espanhol era meu parceiro.

Vivíamos apavorados com os

Temporais – pareciam odiar

Aqueles lugares ...

 

Vinham ferozes contra as

Sete ou oito cabanas

Desarmadas.

 

Num pé de café nasci.

O trenzinho passava

Por entre a plantação. Deu a hora

Exata. Nesse tempo os velhos

Imigrantes impressionavam os recém-chegados.

O tema do falatório era o lobisomem.

A lua e o sol passavam longe,

Mais tarde mudamos para a Rua de Cima.

O sol e a lua moravam atrás de nosso

Casa. Quantas vezes vi o sol parado.

Éramos os primeiros a receber sua luz e calor.

Em muitas ocasiões ouvi a lua cantar.

 

Esmerava-se para aparecer nitidamente

Redondas. Ficava espiando do nosso maracujazeiro.

Surpreendido vendo São Jorge à paisana,

Pensei pedir-lhe o cavalo emprestado.

Não me animei. A lua estava de vestido de

Noiva. Os sinos começaram a badalar.

As gentes acudiam, era a missa do galo.

Os dois sítios do Adão e dos olhos-d’água

Lá estavam desde cedo.

As estrelas baixaram iluminando o lado

De fora da igreja, onde se aglomeravam

As gentes, os cães e os animais de montaria.

O Dragão veio se chegando de chinelos ...

 

Minha memória já não alcança

Aqueles cafezais. Começa

No passado. Antes há lembranças entrelaçadas

E sonhos. Mesmo se prolongando.

 

Até lá, vejo esfumaçado,

Os sonhos se repetem?

As nuvens no céu?

 

A água do rio terá a

Mesma medida? Ou a mesma cor?

Sofrerá a água?

Correr, correr sempre, e ter olhos

 

Para ver como quiser: ver a

Estrada azul voar no espaço

Como a brisa e disparar

No cavalo branco sem se importar

Para onde.

 

Amanhecer alegre nas festas

Da fazenda. Preparavam

Os cavalos atrelando-os aos

Troles. Iam buscar a música.

 

O baile desta vez não era

De sanfona. O dono era

Importante. O córrego estranhava

Ter de refletir tantas gentes e animais.

 

Fogueiras, quentão e rapadura.

As moças endomingadas valiam-se

De Santo Antônio. O céu estava

Completo e nítido. Cada um esperava

 

 

Sua alegria – para a maioria não

Vinha – o vento a conduzia para

Outras terras, às vezes, olhando à toa,

Vejo passando qualquer coisa branca.

 

É uma alegria sem destino

Ou uma estrela morta. O som da

Música do baile vaga no espaço

Ou no assobio dos namorados.

 

Distante o mais longe na memória

A casa velha, o coqueiro solitário.

No amanhecer do orvalho

Moravam os donos do gado.

 

Era em algum lugar numa

História de Dona Iria ou dentro

Da chuva. Não havia lua e nem

Sol. Qualquer coisa branca e azulada.

 

Não sei o que está preso

Em mim: lembrança fixada

Em meus olhos. Se não penso,

Ela surge. A cor da porta e

 

Da janela perdi e nunca mais

Achei contente mesmo assim,

Em sonhos vejo tudo e

A porta e a janela – mas em preto e branco.

 

Do sol dos sábados chovia alegria

Endomingava as árvores e toda

A natureza. Na varrição dos terreiros

Se ocupavam todos da família.

 

Em seguida, dos milhares de

Montículos a fumaça subia e

Se transformando num coro de anjos.

 

De volta a casa

Passava um ou outro trole

Ou cavaleiro vindo das fazendas.

 

Na pracinha frangos e perus

Ciscavam. Cães e cabritos circulavam

Indecisos e amedrontados.

 

Não há mais fumaça de anjo

E nem varrição de terreiro.

Do sol nunca mais choveu.

 

As porteiras nos caminhos

Tortuosos e semelhantes às covas

Do cemitério. Porteiras rangendo

Ou batendo. O eco rápido

Comunicava-se até para lá do

Longe. Silenciosas quase sempre.

Raros caminhantes. Cores diversas.

As mais próximas das fazendas

Alegravam-se sempre,

A porteira preta acolhia

As assombrações, a coragem

Ao avistá-la fugia no espaço.

 

Outras tão alegres, preferidas

Dos pássaros. Podiam morar

Ali. Nenhum de nós tocava nos ninhos.

 

O som das porteiras distantes que estão dentro de mim ...

Festas, procissões, banda de música,

Leilões de prendas e o repique dos sinos,

Passeio na retreta, moças bonitas,

Todos com suas melhores roupas.

 

Na plataforma da estação

Esperávamos a chegada do trem

Talvez viesse qualquer coisa

Para nós: um volume de alegria. Como

Era imenso o pequeno povoado!

Cada um de nós tinha namorada,

Mesmo sem ela saber.

Nos bailes nossos olhos acompanhavam

 

A mais bela. Quando tudo terminava,

A tristeza descia sobre nós ...

Só nos restava a

Volta do coreto nos domingos.

 

Badalava a hora da reza.

Melancólicos, éramos obrigados a ir embora

Como demoravam passar os dias!

As moças das fazendas só viriam no pano próximo.

 

Com os pés e os lábios rachados

Pela lâmina do inverno, saíamos

Ao encontro dos companheiros,

Mesmo quando a chuva monótona

Invernava.

Íamos ver os ninhos de

Passarinhos, cada um zelava

De uns quantos. Nenhum os maltratava.

Levávamos alimentos a eles

Distribuíamos arapucas pelo pasto.

Assim brincando, crescíamos.

O vento passava sem destruir nada.

Voltávamos correndo,

Íamos

Nos aquecer perto do fogo,

Que na estação

Permanecia aceso.

Fazíamos pipoca. Às vezes,

Confortados adormecíamos.

A madrugada conta-me sempre, e

Sempre não entendo. Talvez

Sejam avisos do mal que me sucede.

 

As chuvaradas de meu

Povoado ... Estas nos traziam tanta alegria!

Patinhávamos na enxurrada.

 

Todos nós saíamos à rua

Felizes em nossas roupas molhadas.

As madrugadas daqueles tempos

 

Eram raras. Despertávamos

Ouvindo o canto dos carros de bois.

O sono nos largava, ficávamos

 

À espera do clarear do dia

Para sairmos. Os sons

Longínquos ou próximos

 

Faziam-nos palpitar. Por onde

Andarão aquelas madrugadas?

 

Galopei o vento e também

Tornei-me invisível. Chegando

Aos olhos-d’água, fui derrubado

Na lagoinha. Fiquei todo molhado.

 

Sentei-me na pedreira, defronte

Do sol. Enxuto, voltei a pé,

Passei pelo matadouro e

Espiei nosso rio de nadar.

 

Existirá ainda? Dali olhava

Os bois colados no monte.

Não se apagará de minha retina

A casa branca dos bexiguentos.

 

Entrava em meu povoado,

Atravessava-o para chegar

Em casa. Sempre

A alegria da volta compensava.

 

O medo de viajar sozinho ...

Como está longe e apagado

Esse viver feliz! O sol, a lua,

As estrelas, as flores e os pássaros

Mostravam-se grátis.

 

Parecia chuva de ouro

Que a locomotiva nas noites escuras espalhava,

Enchendo o espaço de fagulhas.

Feérico e inesquecível – nem o céu estrelado

Dava aquela sensação de glória

Ao coração fremente. Sentimento

De ternura ...

Desejava abraçar os viajantes,

Desejar-lhes felicidades.

As casinhas de beira de estrada, mal percebidas

Apenas pelo tênue fio dum lumezinho ...

Ternura para seus habitantes ...

Minha paisagem se distanciava.

 

Vi um pé de alecrim no campo dos zebus

Alecrim, alecrim, filho da rosa e do cravo,

Vem ajudar-me a encontrar meu amor.

Vamos primeiro ao mar, depois subiremos

A montanha. Se o encontrarmos, te darei, te darei ...

 

As mangueiras ramalhavam

E agitavam os corações acesos

Que as enfeitavam. Velhas

Mangueiras de minha infância ...

Eram as babás dos meninos

Pobres como eu. Floriam e

Ninguém lhes atirava pedras.

Das flores nasciam o coraçõezinhos

De verde limpo, sem o pó das

Velhas folhas espalhado pelo

Vento. Estas, tão abundantes –

Serviam de escudo. Os corações

Em sua plenitude luziam ao longe.

Às vezes choravam lágrimas

Resinosas.

 

Dona Iria portuguesa

Contava-nos histórias.

Quando o sol descia,

Estávamos todos em sua

 

Casa. Que lindas eram!

Cada um de nós se imaginava

O herói. Estão em minha

Lembrança – embaralhadas.

 

Para nós Dona Iria era a melhor,

A mais importante.

Veio a geada e

Queimou todos os cafezais.

 

Eu ouvia os comentários dos adultos.

Meu pai falou em crise.

Pedi a Deus que não deixasse

Pegar em Dona Iria aquela doença.

 

À noite, viajando pela estrada solitária montando

O Negrinho, sentia uma sensação de paz.

As estrelas cintilavam clareando a campina.

O céu, com seus milhões de lumes,

Tirava da penumbra vultos de formas variadas.

Assim, acompanhado, o medo não viria.

Oh estrada do paraíso! Teria cortejo de anjos?

Que tranqüilidade! Sentia a erva

Crescer, os pássaros imóveis em seus ninhos.

Acompanhava-os o silêncio. Não sabia onde ia

Meu cavalo, mestre em andanças, enxergava

Mais à noite. Respirando a brisa amena, ia

Pensando: Por que não morrer

Ali no caminho do céu?

 

Se eu pudesse por onde

Anda o som do sino

Nas alvoradas do dia de

Festa de Santo Antônio!

 

Perguntei ao vento, que

Invisível galopa por estes

Mundos e sempre passa por

Meu povoado. Existirá

 

Ainda? Ou transformou-se

Em arco-íris? As andorinhas

Enchiam a praça da Igrejinha

Seu chilrear acompanhava

O repique do sino de minha

Infância.

 

Na pracinha de Santo Antônio

Havia um morto abandonado

Ninguém sabia quem o tinha

Largado ali. Era um preto já

 

Em decomposição. Talvez

Um órfão vindo das bandas

Do Triângulo para ser matado.

A vida nada vali ali.

 

 

Haveria interesse em conhecer o matoador?

O vento e a lua não contariam.

A noite negra e os raios assistiam,

Na terra molhada havia,

 

Por todos os lados, rastos de pés

Semelhantes. Depois de alguns

Dias o enterraram. Não tocaram

O sino. Lá todos têm o mesmo pé.

 

Aos sete ou oito anos tive

Uma namorada branca, branca.

Nunca lhe disse uma palavra.

Nos víamos à saída da escola

 

Ou aos domingos na Igreja.

Ela sabia. Ficava vermelho

Quando os meninos diziam

O nome dela. Ao sol ela doía na vista,

 

De tão branca e luminosa.

Depois nunca mais a vi e

Nem lhe ouvi o nome.

Namorei tantas meninas e

Ninguém soube.

 

Sofri e sonhava. Às tardes

Na hora do trem chegar

Passava milhares de vezes

Em frente à casa dela. Atrás

De minha retina estão todas as casas ...

 

As roseiras estão em flor? Quantas rosas nas

Roseiras lá de casa! Todos vinham pedir rosas

Por mais que levassem, mais havia

As roseiras estiveram presentes desde

O meu nascimento. Minha mãe cultivava-as

Ficava lisonjeada quando pediam. Havia outras

Flores. Sua preferida era a rosa.

A idade não lhe permite mais esse prazer.

Também com a idade as roseiras não dão

Mais rosas.

Com elas se apagou parte

De minha vida feliz ...

 

Nem vi o mar e nem as árvores.

A cegueira escureceu-me

A imaginação. Ouço o sino de onde?

Badala até chegarem ao cemitério.

Enxergo somente reproduções.

Algumas em cores, outras em branco e preto.

Carrego-as dentro de mim.

Não ouço vozes e nem barulho.

Ainda estarei neste mundo?

Lembro-me dos azuis nas

Montanhas e das águas

Pardacentas dos córregos do povoado.

O matadouro ficava a uns cinco quilômetros

Íamos em grupo nadar no córrego barrento.

Quando abatiam o gado, ele recebia toda a sujeira.

Entretinha-me a olhar as montanhas, os animais

Colados a elas ou gravados. A água

Turva corria entre touceiras de barba-

De-bode, um ou outro arbusto retorcido e dourado

Pelo sol. A estrada era movimentada. Em casa

Sabiam de nossa escapada e desobediência. Quando

Algum mais tímido propunha a volta todos respondiam:

__ Vamos apanhar mesmo, aproveitemos até ao escurecer.

Mais adiante ficava a fazenda dos olhos-d’água.

Mais para frente era o fim do mundo.

 

Já na fila

Da última viagem,

Dói-me deixar-te.

 

Meu espírito estará perto.

Talvez junto iremos à

Montanha à procura das nascentes.

 

Olharemos as pedras e os

Rios; te recordarás de mim? ...

Dá um nó em tua blusa.

 

Só neste quarto,

Faço uma incursão no

Passado. Vejo-me armando arapuca,

Sou o prisioneiro eu mesmo.

 

Houve alegrias,

Misturadas com sarampo.

Quebrei a perna ao chegarem.

 

Mas tudo se iluminou: a lua

Branca sorria. Acenavam-me as gabirobeiras:

Em cada uma eu via a tua imagem ...

 

Eu lidava mais com os

Bichos, as árvores, as águas,

O céu estrelado e o vento ...

Também com a minha botininha e meu

Chapéu: existirão ainda?

 

Mais tarde tratei com os

Homens: e a tristeza veio e

Permaneceu – nunca mais me alegrei.

 

Na infância amei uma coisa branca

Esperava-a nas esquinas

Pressentia-a de longe.

A lua de São Jorge alumiava

A estrada para ela.

 

Nas noites estreladas nada ouvíamos. Dos sentidos

Só os olhos agiam e anulavam os outros.

O mau tempo trazia a escuridão e a tristeza.

O sino da cadeira dava as dez pancadas

De medo. Seriam os lobisomens?

 

Às dez em geral dormíamos, o trovão e as faíscas traziam

Inquietação. Sem coragem de sair à rua

Ou ao quintal. Sobressaltos até ao amanhecer.

O vento zunia. Estaria furioso?

Depois de dado o toque de recolher

Os dois únicos soldados do povoado patrulhavam ligeiros,

Batendo os sapatões no solo. Longe cães ladravam

Voz de carreiro atrasado pelo encalhe interrompia o

Silêncio, chamando os lindos nomes dos bois de seu carro.

A quietude permitia ouvir nitidamente seus resmungos.

Vinham desde a lonjura sobre o vento ...

 

As viagens de trem foram as melhores.

Olhando as árvores, as casas, os animais e

Os fios telegráficos, ia sonhando.

As paisagens e seus habitantes

Vistos dali pareciam contentes ...

Tudo endomingado. Apreciava o

Ruído do trem. Nas paradas, nas

Pequenas estações, lá estavam os

Mendigos, cegos ou sem perna, os

Meninos apregoando alguma coisa e as

Filhas do chefe vendendo café em

Uma janela. Mocinhas nascidas

Ali, ansiosas por respirar outros

 

Ares. Tristes mas esperançosas.

Talvez seus sonhos se realizassem ...

O sonho era um príncipe. Ele não

Viria. Elas seriam logradas, mas

Era bom morrer

Sonhando com o príncipe.

 

Sentia-me feliz quando chegava um circo.

Vinha de terras estranhas.

Todo o meu pensamento se ocupava dele.

O palhaço, montando um burro velho, fazia

Reclame com a meninada acompanhando.

Eu assistia ao espetáculo e apaixonava-se pelas

Acrobatas de dez a quinze anos. Fazia

Planos para fugir com elas. Nunca lhes falei.

Por elas tudo em mim palpitava.

Minha fantasia,

Voltando à vida real, entristecia-me. Não era eu

Um príncipe? Nada disso. Roupas baratas,

Pobreza ... Até as flores lá de casa pareciam

Murchas e sem perfume. Só nos achávamos

Bem rondando o circo. Quando partia para outra

Localidade, eu sentia tanta tristeza, chegava ao desespero,

Chorava silenciosamente; desolado ia ver o trem

Passar na direção onde estavam as acrobatas.

Talvez pensassem em mim

O trem seria meu emissário.

Nos encontraríamos mais

Tarde ... O tempo deixava pequena lembrança

Até a chegada de outro circo ...

 

Passaram os  acontecimentos;

Só não passáramos sonhos. Tão

Reais que ninguém saberia distingui-los

De coisas acontecidas. Sentávamos ao

Redor do fogo nas manhãs frias, na

Colheita do café. O céu cobria-se de

Luzes nas noites geladas. Deitado

De costas, maravilhado, olhando,

Pedi a Deus para morrer.

Tinha perto de sete anos, seria

Anjo. Depois dos sete nem caixão azul

Teria. Por onde andais, meus sonhos?

Voltarei a sonhar? Estarei sonhando?

 

Terei vivido minhas vidas?

Tantas recordações baralhadas!

Quando eram sonhos? Quando realidade?

Posso me ver no longe muitas vezes,

Tão remoto e tão rápido ...

Meus chapéus, minhas camisas,

Onde estarão?

O sol e o cheiro da terra ...

A Rosona, velha imigrante, com

Seu lenço amarelo e preto ...

Par vê-la atravessava-se o cafezal

E um córrego. Passarinhos ...

Era a avó do primo Júlio.

A mula-sem-cabeça, o lobisomem

São desse tempo. Mais distante

A casa, o coqueiro grande.

Madrugada orvalhada e cheirosa ...

 

Nos olhos-d’água

A sanfona do Gorbelin se ouvia

A noite inteira. Namorados

No baile. Um ou outro saía

Para o escuro e ficava olhando o firmamento

E as estrelas. O gado pastava

Silencioso.

 

Bem maior foi meu mundo no

Povoado, e o mais misterioso também

Nossa banda de música, com tampas

De panelas, e flautas de bambu,

E pífanos de canudo de mamoeiro ...

Marchávamos pelas ruas do povoado.

Em cada um de nós havia um general

Comandante. O entusiasmo

Nos fazia tremer. Os cães amigos

Nos acompanhavam, pareciam

Sonhar também ...

 

Pedi ao anjo as asas emprestadas. Sobrevoei

Meu povoado. Irriguei as plantações com minhas

Lágrimas

Pensei na felicidade perdida

Não há ali mais nada.

Tudo que me fez sofrer e me fez feliz não

Existe mais.

Não irei ao povoado

Não verei o trem nem os zebus.

Não terei mais aquela luz

Suave e repousante. Nossa

Casas é um tumula vazio

As mangueiras e todas as árvores

Estarão petrificadas?

Tive muitos chapéus,

Nunca mais os vi, onde estarão?

O meu galo-da-índia arroxeado

E briguento ficou por lá.

O meu canivetinho de cabo de madrepérola

Sumiu há muitos anos.

Haverá nos ventos algum ladrão?

 

Tudo o que tive sumiu.

Sumiram as brancas nuvens daquele tempo.

Sumiram as fogueiras de São João,

Sumiram a maioria dos meus amigos,

As músicas da sanfona do Gorbelin.

 

Nas noites de temporal as

Casuarianas choravam um choro

Triste, triste e o sino tocava

Sozinho na igrejinha deserta.

 

Alguns cavalos amedrontados

Galopavam sem direção ...

Inquietantes barulhos vagavam no

Espaço. Gotejava em todos os aposentos.

 

Refletiam as vidraças quebradas

Os canteiros verdes e a s flores

As chuvas miúdas das invernadas

Monótonas e mansas valorizavam as cores

 

A neblina nossos olhos entupia

A boca com surpresa nos fumegava

Ao redor de tudo se transformava não era o que se via

A terra o fumo engolia e não enxergava

 

Ao que era tudo voltava

O sol longe nas alturas iluminava

Suave através de densas camadas

As nuvens que se esgarçavam esbranquiçadas

 

A luz do sol filtrava

Exuberante a pequena erva se engalanava

A natureza movia-se encantada

Da neblina e da chuva suavemente peneirada

 

Os temporais naqueles tempos de

Minha infância!

Alguém doente pediu

Guarda-chuva; não havia mais telhado

Os estragos eram muitos

Os animais espavoridos fugiam

O entardecer sem sol e a noite

Escura, sem lua e sem estrelas

Era triste

Os córregos com suas águas turvas

Inundavam as plantações.

Chegavam para serem enterrados

Os mortos pelos raios da véspera.

 

Era um imprevisto favorável. O mar

Nos liga. Ouço tua voz de menina soando

Em meu ouvido como música do céu.

Quanta ternura ...

Dorme e dá-me tua alma por uns instantes

De mãos presas iremos na alvorada,

Ver os eucaliptos ao lado da

Velha casa abandonada. Prosseguiremos

Conversando lhe direi como não cessei

De pensar e mesmo no

Sono sonho contigo.

Não falarei de tua pele, de teus

Cabelos, de teus lábios e de teus olhos

Fundos ...

 

A lua vestia-se de noiva,

Quando aparecia nítida,

Nas festas do céu.

Vinha pela metade

 

Nos outros dias

Não era tão branca

E às vezes rasgada

Ou inapercebida. Assim São Jorge

 

Não viajava

Ele o cavalo e o dragão

Não cabiam

O foguete desrespeito-a não vem mais

Vestida de noiva.

 

Não tínhamos nenhum brinquedo

Comprado. Fabricamos

Nosso papagaios, piões

Diabolô.

A noite de mãos livres e

pés ligeiros era: pique, barra-

manteiga, cruzado.

Certas noites de céu estrelado

E lua, ficávamos deitados na

Grama  da igreja de olhos presos

Por fios luminosos vindos do céu

era jogo de

Encantamento. No silêncio podíamos

Perceber o menor ruído

Hora do deslocamento dos

Pequenos lumes ... Onde andam

Aqueles meninos, e aquele

Céu luminoso e de festa?

Os medos desapareciam

Sem nada dizer nos recolhíamos

Tranqüilos ...

 

Quanta esperança naquele

Tempo. Das manhãs de neblina

No pasto os potrinhos fogosos se assustavam

Nos assustando. A fumaça se ia

 

Voltaria no outro inverno?

O fumo saía de nossas bocas

Sensação de homens crescidos ...

Os córregos fumegavam também

 

Mundo de alegrias ao lado dos

Elementos. O céu era logo ali

O lugar mais distante o Furquim

Além do arraial do Silva ...

 

Os zebus pastavam nos campos

De capim-gordura e barba-de-bode

As perdizes nasciam ali e

O grito de seriema ecoava longe longe ...

 

Mais do que o apito do trem

Onde estarão acumulados?

Os periquitos só apareciam no

Poente. Passavam nas alturas em formação

 

Velozes

Volteavam e desciam sobre os

Coqueiros. Antes do escuro chegar

Todos novamente disciplinados evoluíam

Desaparecendo no espaço.

 

Quando o crepúsculo tingir as últimas

Nuvens haverá o dia de lua. Só os simples

Se alegrarão.

As estradas brancas, as montanhas recostadas no

Céu, os animais e toda a criação do Universo

Ficam plantadas ali. Paz repousante,

Movem-se suavemente as folhas, e os pássaros.

A luzinha na casa do lavrador, lá longe nos faz

Imaginar: “Como são felizes aqueles”... O gado

Ajeita-se par o descanso. O Senhor parece

Abençoar, fica de vigília a noite toda. As

Nuvens se dissolvem, a lua dirige

A noite. O pequeno riacho serpenteando vagaroso

Acompanha a beleza do DIA DE LUA

 

Conhecia tão bem aqueles

Caminhos e lá chegando não os

Encontrei – desapareceram

Quis ver a “arvrona” da infância

Interroguei aos daquele tempo

Nem sabiam do que se tratava

Não perguntei mais.

Desde esse tempo peguei tristeza

Existia?

Ou sonhei. Também não vi

As estrelas no céu

Os vaga-lumes acesos

Clareavam os trilhos

Na escuridão tropecei

Desmancharam-me

E não posso mover

 

A terra vermelha de Jardinópolis

Era impalpável. Os filhotes do vento

A levantavam atirando-a em

Tudo. Os habitantes não usavam

 

Sapatos e nem roupas brancas. Quando a ventania

Passava por lá fechavam-se

Em casa. De povoado arenoso

invejava-os crente em sua superioridade.

 

Zangávamos com

os forasteiros por gritarem, na partida do trem:

Voltaremos

Para tomar banho de areia

 

Gostava daquela cidadezinha

Avermelhada de minha avó e tios

Visitava-os sempre

Era a minha Jerusalém

 

Quanta alegria esbanjei ali

Muitas moças e mais belas, olhava-as

Mas ninguém me via. Se uma delas

Pousasse os olhos em mim perderia os sentidos ...